O que fica por revelar no filme Segredos do Putumayo
O filme Segredos do Putumayo, do realizador brasileiro Aurélio Michiles, centra-se no universo do ciclo da borracha na Amazónia peruana do início do século XX, e pretende pôr em foco o sistema de mão-de-obra escrava indígena e o consequente genocídio dos povos originários provocados por este negócio. O relato da tragédia é conduzido por um cônsul britânico, o irlandês Roger Casement (1864-1916), que viajou pelas margens do rio Putumayo para investigar as denúncias contra a Peruvian Amazon Company (PAC), empresa dirigida pelo peruano Julio César Arana em associação com investidores britânicos.
Apesar do foco do documentário, Roger Casement torna-se no seu protagonista. Aurélio Michiles segue parte significativa da biografia do irlandês, da qual destaca o seu trabalho humanitário e anticolonialista. Este ponto de vista nem sempre se ajusta ao que o cônsul deixou escrito; ignora certas contradições ideológicas que ampliariam a abrangência política do filme, oferecendo um melhor entendimento do pensamento colonial europeu, sobretudo na sua relação com a região amazónica.
A escolha narrativa de Segredos do Putumayo serve o objetivo primordial de moldar a personagem como defensora dos direitos dos povos oprimidos, mas na parcialidade do que escolhe contar, descura, de certa forma, as causas históricas da opressão.
Segredos do Putumayo não é o primeiro trabalho no qual Aurélio Michiles, amazonense, natural de Manaus, aborda o ciclo da borracha. O tema também está presente nos documentários A Árvore da Fortuna (1992), O Cineasta da Selva (1997) e Teatro Amazonas (2002), títulos que fazem parte de uma cinematografia que, com frequência, se centra na região amazónica.
Segredos do Putumayo estreou em 2020 no Festival É tudo Verdade, em São Paulo, onde foi distinguido com uma menção honrosa, contudo só chegou às salas de cinema brasileiras em 2022, devido aos constrangimentos provocados pela pandemia.1
A ideia de realizar este filme surgiu por influência de Angus Mitchel, historiador inglês que fez a revisão do diário da viagem do cônsul britânico ao Putumayo, documento que se encontrava arquivado na Biblioteca Nacional da Irlanda. Depois de quase um século esquecido, a revisão de Mitchel levou à publicação, em 1997, de The Amazon Journal of Roger Casement2 e à abertura ao público do seu manuscrito.
O roteiro do documentário, da autoria de Aurélio Michiles em parceria com Danilo Gullane e André Finotti, foi construído a partir de excertos deste diário, narrados no filme pela voz do ator irlandês Stephen Rea.
A longa-metragem entrelaça narrativamente diferentes pontos geográficos numa conexão geopolítica da época, na qual a Europa ocupa a posição dominante com um projeto imperialista que explorava recursos e populações locais. Seguindo a trajetória do diplomata, o filme começa no Congo e termina na Irlanda, mas passa ainda por outros países como o Brasil, Colômbia e Inglaterra, assim como pelas cidades de Manaus, Belém, Iquitos, Lima, Londres e Dublin, mas em nenhum lugar se detém como nas margens do Putamayo, na região amazónica La Montaña, uma área de floresta maior que Inglaterra cuja posse foi, durante muito tempo, disputada por vários países.
Quando sobre o domínio do Peru, “a exploração da borracha nesta zona foi a que teve mais impacto económico, político e demográfico, não só pela amplitude do território, mas porque durou muito mais tempo”.3 As populações originárias foram as mais atingidas. Segundo Oscar Guarín, professor da Universidade Javeriana, da Colômbia, 40 mil pessoas4 foram mortas entre 1870 e 1932. Alguns povos indígenas desapareceram em consequência da barbárie, outros como os povos Witotos, Boras, Okainas e Muinanes sobreviveram. Descendentes das vítimas participam no documentário, alguns para relembrar os testemunhos dos seus ancestrais, memórias que procuram preservar.
Depois do governo do Peru fracassar na tentativa de povoar a área com imigrantes europeus, os povos indígenas foram forçados a trabalhar, sob um regime de terror, para os empresários da borracha. Para facilitar o domínio dos povos sequestrados, estes foram deslocadas dos seus territórios, aumentando assim a sua vulnerabilidade. Dependentes da comida e das ferramentas que a empresa lhes proporcionava, ficavam cativos do clássico sistema de endividamento permanente e crescente.
A atividade dos escravizados era controlada por um exército de capatazes que se ocupava de verificar a borracha recolhida por cada indígena, de punir os que não traziam a quantidade estipulada, de perseguir e capturar os que fugiam dos centros de exploração.
Julio C. Arana, sucessor do todo-poderoso Carlos Fermín Fitzcarrald, outro dos magnatas peruanos do mesmo negócio5, fez a sua fortuna com a coleta e transporte desta matéria-prima. Enquanto estendia o negócio pela floresta amazónica (teve cerca de quarenta cinco centros de exploração sob o seu comando) e a sua família somava residências em Manaus, Iquitos e Londres, o empresário acumulou também poder político, do qual se beneficiou para operar impunemente.
Uma vez consolidado o seu negócio nas terras de Putumayo, Arana viajou a Londres para captar capital britânico. Em 1907 fundou a Peruvian Amazon Company com sócios britânicos, numa época em que as denúncias de maltrato e assassinato de indígenas, de abuso de poder e corrupção já eram públicas no Peru e, inclusive, já tinham chegado aos tribunais.
O percurso de Roger Casement na senda do boom da borracha.
Na segunda metade do século XIX e até inícios do século XX, a borracha natural foi uma das matérias-primas essenciais para o desenvolvimento de vários países europeus e dos Estados Unidos; primeiro para o fabrico de bicicletas e, mais tarde, de automóveis. As árvores da selva amazónica no Brasil, Bolívia, Peru e Colômbia abasteciam a indústria da borracha que recebia também grandes quantidades das florestas tropicais da África Central, no Congo Belga, atualmente Republica Democrática do Congo.
Segredos do Putumayo começa estrategicamente neste país africano, num prólogo que introduz a violência colonial exercida pelo rei belga, proprietário do então chamado Estado Livre do Congo, numa época em que o continente africano estava repartido entre países europeus. Leopoldo II enriqueceu desmesuradamente graças às riquezas do Congo - entre estas a da borracha - espoliadas sob o regime de escravatura e genocídio das populações indígenas locais.
Nos finais do século XIX, as denúncias contra as crueldades cometidas em nome da Coroa belga, levaram a Coroa britânica a enviar ao país africano, em 1903, o mesmo diplomata que incumbiria, mais tarde, de viajar à Amazónia peruana: Roger Casement tinha como missão investigar e relatar os abusos brutais perpetrados contra os nativos congoleses. O relatório que apresentou ao Parlamento britânico, em 1904, contribuiu para que esta colónia africana passasse diretamente para o Estado belga quatro anos depois, deixando de ser posse do monarca acusado do extermínio de cerca de 10 milhões de pessoas.
No Congo e na Amazónia, Casement estava oficialmente autorizado a investigar e relatar crimes contra a humanidade, numa época em que tais atrocidades não se denunciavam como tal e eram, geralmente, ocultadas. Por documentar os abusos, as dinâmicas e os protocolos da dominação colonial nestes territórios, e fazer chegar essa informação às autoridades britânicas, o diplomata é referido como um dos pioneiros na investigação e defesa dos direitos humanos, sobretudo dos povos indígenas.
Depois do prólogo no Congo, o filme de Michiles avança com Roger Casement rumo à floresta amazónica do Putumayo, na fronteira tríplice do Brasil, Peru e Colômbia, lugar para onde foi enviado, em 1910, pelo Foreign Office, apenas três anos após a fundação da PAC.
Um ano antes da viagem de Casement, um artigo intitulado “O Paraíso do Diabo”, publicado no jornal britânico Truth, revelava que a empresa anglo-peruana escravizava a população indígena nas explorações da borracha do Putumayo. O autor do artigo foi Walter Hardenburg, engenheiro estado-unidense, que viajou por Iquitos e pela região onde operava a companhia. A repercussão destas notícias na opinião pública internacional motivou o envio do cônsul no Rio de Janeiro ao Peru, assim como configurou uma importante oportunidade para determinados sectores da sociedade inglesa demonstrarem a sua indignação contra a escravatura, um sistema que persistia em várias regiões do mundo, como base de grandes negócios extrativistas.
Durante o século XIX, a Grã-Bretanha aboliu a escravatura e o tráfico de escravos nas suas colónias, e procurou estabelecer acordos com outros países nesse sentido. Foi o que fez com o Peru, em 1852, através do Tratado de Amizade, Comércio e Navegação pelo qual o país sul-americano se comprometia a cooperar na abolição total do tráfico. Antes, em 1825, o governo peruano tinha proibido que as autoridades forçassem os indígenas a trabalhar para terceiros, mas perante as evidências de que isso não estava a ser respeitado, a Sociedade Anti Escravatura e de Proteção dos Aborígenes britânica pressionou as autoridades para que a companhia anglo-peruana fosse investigada.
Segundo relata o cônsul no documentário, a sua missão tinha como motivo oficial investigar a atuação dos capatazes da companhia, cidadãos da ilha de Barbados - um protetorado sob o domínio britânico - que eram indicados como os algozes da população indígena. No seu diário escreve: “Estou aqui apenas para fazer uma coisa e apenas com os meios de que disponho, nomeadamente, interrogar os súbditos britânicos [barbadenses] que encontro ao serviço da companhia, o que estou autorizado a fazer, e basear as minhas conclusões nisso, dado que estes são os únicos testemunhos aos quais tenho acesso. Poder-se-ia acrescentar o que eu próprio vi e penso”.6 (Casement, 2011. p.73)
Na que chamou de ‘terra do crime, bastião da maldade’, Casement encontrou um sistema que entendia não ser apenas de escravatura, mas também de extermínio. O diplomata visitou vários centros da empresa ao longo da região; passou grande parte da sua estadia no centro La Chorrera, referenciado como o lugar, onde os castigos infligidos à população indígena eram os mais severos.
Apesar das dificuldades na comunicação, o cônsul aproximou-se da população indígena, algumas vezes sem mais intermediários que um tradutor, e fotografou os corpos marcados com o ‘ferro’ da Casa Arana, as cicatrizes dos açoites, os indígenas acorrentados ou presos ao ‘cepo’, as cargas que transportavam (fardos de borracha que, por vezes, ultrapassavam o peso de quem os carregava), entre outras evidências.
Alguns desses registos fotográficos foram incluídos no documentário Segredos do Putumayo, representando não só provas dos crimes, mas também evidências da missão humanitária do diplomata britânico. No entanto, certos historiadores e estudiosos questionam as intenções da viagem de Casement, atribuindo-lhe um enviesamento político-económico, que se baseia no fato da Grã-Bretanha ter, então, garantida a produção de borracha em grandes quantidades, nas suas colonias no sudeste asiático, o que retirava interesse comercial às explorações e à aliança sul-americanas.
Cristina Oñoro e Stell Ramos escrevem na introdução de Diário del Amazonas: “Por esta razão, não faltaram vozes a denunciar que a intervenção inglesa no Putumayo estava longe de ser um trabalho humanitário desinteressado, foi mais exatamente uma manobra para acabar com a hegemonia dos barões da borracha da Amazónia, como Arana, e abrir caminho ao comércio da borracha produzida nas colónias inglesas. Estas eram mais produtivas e rentáveis…”.(Casement, 2011. p.17)
Seria Casement um agente ao serviço dos interesses comerciais britânicos? Ambas viagens – a do Congo e a da Amazónia - tiveram como destino lugares onde se extraia esta matéria-prima. Depois da sua estadia no Peru, o declínio do boom da borracha precipitou-se nos diversos territórios amazónicos. Esta questão fundamental continua em aberto e a narrativa da longa-metragem de Michiles não a contempla.
A escravidão indígena não era segredo, nem se limitava ao negócio da borracha.
No início do mês de outubro de 1910, Casement encontrava-se num dos centros da companhia anglo-peruana, às margens do rio Japurá (Caquetá), “um feliz coto de caça dos portugueses e dos demais escravizadores de indígenas”. Nesta anotação no seu diário cita Henry Lister Maw, um tenente da Marinha britânica que desceu o rio Amazonas, em 1827, e anotou os métodos dos portugueses na ‘caça aos indígenas’. O cônsul conclui que os métodos, de um século antes, eram os mesmos usados pelos capatazes da PAC. (Casement, 2011. p.131).
Michiles não deixa este excerto do diário de fora do seu filme. Apesar de breve, a referência é importante para a contextualização histórica, sobretudo para não delimitar o que acontecia no Putumayo ao ciclo da borracha. Nas últimas décadas do século XIX, a captura e a venda de indígenas era um ato quotidiano e um negócio tolerado pelas autoridades civis peruanas. Na Amazónia, as incursões para captura eram conhecidas como ‘correrias’ - comerciantes entravam na selva e traziam consigo homens, mulheres e crianças para vender.
Em 1897, o padre espanhol Gabriel Sala também esteve na região, numa viagem na qual foi, em parte, acompanhado por Fitzcarrald. No relato que deixou dessa expedição, Sala apontou diretamente a hipocrisia da sociedade da época: “Todos clamam contra o negócio de venda de carne humana que se faz nestas terras; mas desde a primeira autoridade até ao último fazendeiro ou comerciante, todos desejam ter um chunchito ou chunchita para o seu serviço; e se o não têm, não deixam de o encomendar aos que participam na chunchada [expedição de captura]; a quem lhes pagam muito bem…”.7
Cinco anos antes da viagem de Casement, Euclides da Cunha, célebre escritor brasileiro, testemunhou, com indignação, o sistema de escravidão generalizado pelas explorações da borracha da região. Cunha chefiou uma missão diplomática e científica de reconhecimento das fronteiras do alto Purus, no atual Estado do Acre, então terras peruanas e bolivianas.
No regresso desta viagem, Euclides anunciou a intenção de escrever um grande livro, da dimensão de Os Sertões, que “vingasse a Hileia amazónica de todas as brutalidades das gentes adoidadas que a maculam desde o século XVIII”.8 A sua morte prematura, em 1909, impediu-o de concretizar esse objetivo. Ainda assim, em 1906 publicou o texto “Entre os Seringais” numa prestigiada revista científica e literária do Rio de Janeiro e, poucos meses antes do seu desaparecimento, lançou À Margem da História, uma compilação de ensaios que denunciavam, com certa urgência, as condições de vida dos seringueiros: “homens esquecidos” no meio da selva, “sem voz e à margem da história”.
Outras denúncias foram publicadas em jornais de Iquitos, de Lima e de Manaus. Em agosto de 1907, ano da fundação da Peruvian Amazon Company, o jornalista peruano Benjamin Saldaña Roca publicou as primeiras revelações nos jornais La Sanción e La Felpa, desencadeando outras notícias sobre a tragédia. Roca também apresentou queixa, no Tribunal de Iquitos, contra os gerentes e capatazes dos centros de atividade da então Casa Arana, acusando-os de ser responsáveis por crimes como violações, torturas, e enforcamentos de indígenas que eram obrigados a trabalhar na coleta da borracha. Apesar do escândalo, Julio C. Arana conseguiu que a Justiça arquivasse o processo.
Com as denúncias da barbárie a chegarem por diversos meios a diferentes geografias, é previsível que o que estava acontecer em Putumayo não fosse propriamente um segredo em Inglaterra, no momento da aliança empresarial com o barão da borracha peruano, em 1907. Certamente os fatos estariam silenciados ou negados por razões políticas e económicas, uma prática que continua a ser atual. Afinal, como ouvimos na narração de Casement no documentário: “Arana e o seu bando são a Peruvian Amazon Company. Os acionistas e os diretores britânicos em Londres são só o manto de respeitabilidade e garantia de dinheiro e de investimentos”.
A construção da personagem de Roger Casement ignora o seu pensamento eurocêntrico.
Em Segredos do Putumayo, o escritor brasileiro Milton Hatoum refere que a viagem Roger Casement “escapou aos clichés e estereótipos que sempre povoaram os viajantes da Amazónia sobretudo nos séculos XVIII e XIX. É uma viagem mais interior”. Hatoum, natural de Manaus e autor de vários livros que incorporam o universo do ciclo da borracha, defende ainda que o diplomata “via o Outro sem distanciamento. Ele via os indígenas como ele via os africanos como parte de uma humanidade à qual ele pertencia como irlandês”.
Estas afirmações de Hatoum no filme servem à construção da personagem humanista, a linha com que trabalha Michiles, mas Casement embora manifestasse uma sincera empatia com os indígenas, não deixava de ter uma visão estereotipada que evidenciava a superioridade do homem branco europeu. Via-os como seres atrasados, necessitados de tutela: “estes pobres servos não tinham um senhor que os cuidasse ou alimentasse, estavam aqui unicamente para obter borracha, forçados pelo chicote e pela pistola”. (Casement, 2011. p.61)
Casement escreveu, de modo paradoxal, sobre as vítimas do genocídio: “Se alguma vez houve pessoas indefesas na face da terra, são estes selvagens nus da selva. Eles não passam de meninos grandes. As suas próprias armas mostram a falta de vivacidade das suas mentes tímidas e a suavidade do seu carácter”. (Casement, 2011. p.49)
Apesar da realidade observada na Amazónia e no Congo, Roger Casement continuava a ser um homem moldado pela história da sua época e pela experiência social sem abandonar os princípios civilizacionais que atendiam os interesses imperialistas: o “senhor que cuidasse” dos povos indígenas deveria ser europeu e, assim sendo, “salvá-los-ia” da escravatura.
Perto do final da sua viagem, em novembro de 1910, o diplomata escreve “Tenho a certeza de que, numa América do Sul reorganizada, quando a Alemanha tiver posto em causa a Doutrina Monroe9 e a tiver despachado alegremente com cartuchos de espingarda, o Vale do Amazonas se tornará um dos maiores celeiros do mundo (…) Tudo o que necessita é o toque de uma mão invisível. De forma vergonhosa e cobarde, os portugueses (os peruanos e outros) exterminaram os índios aborígenes, que se poderiam contar aos milhões se os jesuítas tivessem triunfado contra Pombal e contra os colonizadores. Os assassinos não substituíram o que devastaram: nem a civilização substituiu o selvagem, nem os homens brancos substituíram o acobreado [caboclo]; tudo o que puderam fazer e fizeram foi não derrubar, não construir, não criar. Este poderoso rio [Amazonas] e, para além dele, as margens deste grande continente esperam a mão da civilização: quatrocentos anos com os espanhóis na sua nascente e trezentos com os portugueses na sua foz fizeram dele primeiro um inferno e depois um deserto. Nenhuma visão seria mais agradável do que a bandeira da civilização teutónica avançando através da selva. (…) A Alemanha, com os seus 70 000 000 homens vigorosos, tem muito a fazer pela humanidade (…) Deixem-na libertar as suas energias reprimidas neste continente e que Deus tenha piedade dos ratos que o roeram durante tanto tempo”. (Casement, 2011. pp.319 e 320)
Nestas páginas do seu diário, o cônsul britânico expõe o quanto a sua crítica sobre as práticas colonialistas dependia da nacionalidade dos dominadores: “A maldição deste continente é a sua latinização (…) O que fizeram por ele em 400 anos de «civilização latina»? Reduziram os muitos milhões de habitantes dos planaltos andinos a uma décima parte, reduziram-nos a uma condição de escravatura (…) e assassinaram os selvagens habitantes das florestas por todos os métodos bárbaros concebíveis, não para os substituir por colonos e agricultores brancos, mas simplesmente para escravizar os sobreviventes sob interesses de um punhado de usurpadores miseráveis, perversos e ignorantes”. (Casement, 2011. p.321)
A Michiles não lhe interessou explorar a ambiguidade do seu protagonista. Distanciando-se das leituras pós-coloniais, Segredos do Putumayo sugere que tudo o que observou Casement, especialmente as atrocidades no Peru, acentuaram o seu anti-imperialismo e o transformaram num revolucionário.
O nacionalismo revolucionário do representante do império britânico.
O verdadeiro foco do anti-imperialismo de Casement estava direcionado à Irlanda, a mais antiga das colónias britânicas. A preocupação com a situação social e política do seu país manifestou-se em vários momentos do seu trajeto. No início da sua estadia em África, durante primeira nomeação como cônsul - em Lourenço Marques (atual Maputo) entre 1895 e 1897 - o diplomata seguiu atentamente a Guerra dos Bóeres e, como escreve o historiador Michael O’Sullivan no artigo “Lies, Damn Lies & Forensics: The Ghost of Roger Casement”10: “foi durante esta guerra que tomou consciência do pior do imperialismo britânico e começou a identificar-se com o nacionalismo irlandês”. Em Moçambique, Casement planeou um ataque de guerrilha ao caminho-de-ferro que ligava Lourenço Marques a Pretória, um ato que não chegou a concretizar-se, mas que demonstra radicalidade, a mesma que pontua a sua participação na rebelião irlandesa, anos mais tarde.
Em 1904, por ocasião da publicação do seu relatório sobre o Congo, Casement escreveu uma carta à historiadora Alice Stopford Green, onde confessava: “Eu sabia muito bem que, se dissesse a verdade sobre a diabólica conspiração de ladrões do Congo, teria de a pagar com o meu próprio futuro, mas quando me decidi a contar, custasse o que custasse, foi a imagem do meu pobre país que me saltou primeiro aos olhos (sic)”.11
Não parece, portanto, que exista um momento específico e decisivo para o despertar do ‘herói revolucionário’, embora Michiles procure estabelecer essa ‘metamorfose’ no Peru, uma ideia que o historiador Angus Mitchell também corrobora no filme: os ‘segredos’ do filme – o sistema de escravatura e opressão no Putumayo – teriam sido a força impulsionadora da transformação de Casement.
Com este processo de transfiguração, o humanista, que vemos desde o início do filme, desvia-se da sua função de relator do extermínio indígena para surgir como herói romantizado, ao estilo dos protagonistas de algumas obras literárias e relatos de viagens amazónicos, nos quais o ‘inferno tropical’ produz o inevitável ‘despertar interior’ da personagem. Neste aspeto, Segredos do Putumayo não parece querer fugir da representação estereotipada do expedicionário.
Em várias entrevistas e conversas sobre o seu filme, o realizador deixa claro que Casement é uma personagem heroica, no afã de encouraçar o herói, representa um homem com uma força de carácter e espírito humanitário sem oscilações, independentemente das diferentes circunstâncias vividas. O epílogo do filme remata essa perspetiva com a intervenção radical de Casement na resistência irlandesa que antecedeu a Revolta da Páscoa, em 1916.
Depois da publicação do relatório de Roger Casement ninguém foi condenado.
Em 1910, no regresso a Londres, Casement apresentou o seu relatório às autoridades britânicas e, dois anos depois, o governo britânico publicou, o Blue Book, um livro, que também era um documento diplomático, com toda a informação sobre as atrocidades cometidas no Putumayo. Na reta final do filme percebemos a deceção de Casement com a repercussão do seu relatório que, segundo o próprio, “não mudou nada”.
Em Londres, Julio C. Arana defendeu-se argumentando ser um civilizador de “tribos selvagens e antropófagas”. Embora os britânicos tivessem decidido pôr fim à companhia, em 1911, os delitos prescreveram e ninguém foi punido. Arana seguiu com a sua atividade: em 1921, quando o Peru perdeu a posse do território correspondente à margem esquerda do Putumayo, o empresário trasladou o seu negócio – e a população indígena que dominava - para a margem direita do rio.
Para minimizar o impacto negativo causado pela publicação do relatório de Roger Casement, Julio C. Arana recorreu, entre outras manobras, ao cinema: financiou a formação de um fotógrafo nas recém-inventadas técnicas cinematográficas dos irmãos Lumière e encomendou-lhe o que se poderia chamar um filme de propaganda. As imagens deveriam demonstrar, ao público britânico, que as acusações de violência e exploração dos povos indígenas eram falsas.
Silvino Santos (1886-1970), um português que emigrou para Manaus, foi o fotógrafo encarregado desta missão. Após receber formação em Paris, voltou ao Brasil e daí viajou aos centros da exploração da borracha do Putumayo, para filmar as ‘benfeitorias’ de Arana. Contudo a sua obra intitulada Rio Putumayo (1913) perdeu-se no naufrágio do navio que a levava a Inglaterra.
Em 1997, Aurélio Michiles realizou o filme O Cineasta da Selva sobre a vida e obra deste fotógrafo que se tornou cineasta, um dos pioneiros a filmar a Amazónia. O recorte narrativo desse filme não aprofunda, de maneira crítica, o contexto histórico da sua relação com Julio C. Arana, mas não deixa de ser interessante observar que, passados mais de vinte anos sobre esse documentário, Aurélio Michiles realize outro que amplia o significado das imagens que Silvino Santos fez na selva peruana.
A repercussão do relatório de Casement teve ainda outros desdobramentos: as suas denúncias foram ampliadas noutros relatórios e livros sobre a tragédia humana provocada pelo boom da borracha. Em 1912, Hardenburg publicou o livro The Putumayo: The Devil’s Paradise. Um ano depois, enquanto Julio C. Arana respondia em tribunal, a Colômbia também apresentou em Londres, um relatório com o nome de O Livro Vermelho de Putumayo; no Peru, o juiz peruano Carlos A. Valcárcel, que iniciou, em 1910, o julgamento contra a Casa Arana, publicou, em 1915, o livro El proceso del Putumayo y sus secretos inauditos, no qual discorria sobre as vicissitudes do processo.
Mais tarde, em 1922, o escritor colombiano José Eustasio Rivera, leitor dos relatos de Casement12, também esteve nos territórios de Putumayo e Caquetá, numa viagem que deu origem a um dos clássicos da literatura do século XX: La Vorágine, publicado em novembro 1924. O romance constrói uma ficção a partir das situações reais que o autor presenciou nas áreas da extração da borracha. Em 1930, foi a vez do português Ferreira de Castro publicar a narrativa autobiográfica Selva, centrada no mesmo universo.
Não se conhece ainda a verdadeira dimensão do sofrimento indígena.
Apesar de todas as publicações e obras literárias que relataram o universo de escravatura e genocídio nas explorações da borracha, faltam palavras para mostrar a verdadeira dimensão do sofrimento e a magnitude da tragédia que fez desaparecer povos inteiros, como escreve o historiador da Universidade de Cartagena, Javier Ortiz Cassiani na sua crónica “El Canasto de la Memoria”.13
No mesmo texto, Cassiani inclui o depoimento de Alejandro, indígena idoso do povo Bora que, com a clareza dos relatos transmitidos oralmente entre gerações, declara: “nenhuma caneta que tenha escrito sobre este massacre chegou perto de dar a verdadeira dimensão do sofrimento dos nossos antepassados, nem La Vorágine, e atrevo-me a dizer, nem o relatório de Sir Roger ao governo britânico conseguiram escrever a realidade do nosso massacre”.
Os povos nativos vítimas do ciclo da borracha não tinham, na época, como denunciar esses acontecimentos. O seu sofrimento foi silenciado por muitas décadas, mas já não é mais. Atualmente os seus descendentes lutam para que as opressões não sejam esquecidas, nem se repitam.
Aurélio Michiles empenhou-se na recolha de testemunhos indígenas, e trouxe para o seu filme vários guardiões da memória. O realizador esteve na região de La Chorrera, onde recolheu depoimentos de descendentes das vítimas. Entre estes está Luz Mariana Remuy, neta de uma indígena Witoto que foi vítima da violência dos capatazes barbadenses da Casa Arana. Mariana Remuy é uma das coordenadoras da Azicatch, a associação que representa os povos indígenas de La Chorrera e que trabalha em conjunto com o Centro Colombiano de Memória Histórica.
Em 1988, o território de La Chorrera foi devolvido aos descendentes dos povos indígenas que antes o habitavam. Em 2008, o Ministério da Cultura colombiano declarou de ‘bem de interesse cultural’ o edifício que albergava o centro de exploração da borracha e, atualmente, conhecido por Casa do Conhecimento.
As gerações atuais procuram que este lugar, assim como os demais centros históricos de opressão, sejam lugares representativos do passado. Conscientes de que a recuperação da identidade e da memória é uma luta coletiva, juntam-se para valorizar e aprender sobre as suas tradições e defender o protagonismo da sua própria narração.
- 1. A Associação Paulista de Críticos de Arte distinguiu, em 2022, Segredos do Putumayo com o prémio de melhor filme e melhor direção de fotografia (André Lorenz Michiles e Fabio Bardella). O filme passou por festivais como Hot Docs e Vancouver Intl. Film Festival (Canadá), Galway Film Fleadh e Foyle Film Festival (Irlanda), Les Rencontres du Cinéma Latino-américain (França), AFI DOCS (EUA), Festival de Cine de Lima (Peru), entre outros. A longa-metragem ainda não teve estreia em Portugal.
- 2. The Amazon Journal of Roger Casement foi publicado no Brasil, em português, com o título de Diário da Amazônia de Roger Casement em 2016, ano do centenário da execução de Roger Casement. A edição foi organizada por Laura P.Z. Izarra e Mariana Bolfarine e lançada pela Edusp, editora da Universidade de São Paulo.
- 3. Em introdução de Alberto Chirif (p.44) a El proceso del Putumayo y sus secretos inauditos de Carlos A. Valcárcel. Ceta 2004.
- 4. Dados apresentados no debate promovido pelo Laboratório Antropológico de Grafia e Imagem da Universidade Estadual de Campinas, no Brasil, em abril 2023. O número total de vítimas nem sempre é consensual e diverge entre os 30 mil e 60 mil indígenas.
- 5. Fitzcarrald foi representado no cinema pelo realizador alemão Werner Herzog no filme Fitzcarraldo (1982).
- 6. Diário del Amazonas. Roger Casement. Editora Funambulista. Primeira edição Março 2011. Luxemburgo-Madrid, Espanha. Introdução e tradução de Cristina Oñoro e Stell Ramos.
- 7. Em El proceso del Putumayo y sus secretos inauditos de Carlos A. Valcárcel. (Pp.35 e 36) Ceta 2004.
- 8. Euclides da Cunha manifestou esta intenção numa carta dirigida ao seu amigo Coelho Neto, datada de 10 de março de 1905. Hileia é o nome dado à floresta amazônica pelos naturalistas Alexander von Humboldt (1769-1859) e Aimé Bonpland (1773-1858).
- 9. A Doutrina Monroe foi estabelecida pelo presidente estado-unidense, James Monroe, em 1823, com a finalidade de proteger o continente americano dos embates colonialistas europeus. Estabelecia-se, entre outras condições, a não intromissão europeia em assuntos internos dos países americanos.
- 10. Em History Ireland, Vol. 10, no 2 (Verão, 2002), pp.5-6. Publicado por Wordwell Ltd.
- 11. Em “Hearts of Darkness: The Experience of ‘Horror’ In Roger Casement’s Writings – The Fabrication of on Antihero”. Roberto Carlos de Andrade. Ilha do Desterro, vol. 72, no 1, (pp.29-40). 2019
- 12. Outro clássico da literatura, no qual tiveram influência os relatos (sobre o Congo) de Casement trata-se do livro Coração das trevas (1902) do escritor polaco-britânico Joseph Conrad. Mais recentemente, em 2010, o escritor peruano Mario Vargas Llosa, publicou o romance O sonho do celta inspirado na vida de Roger Casement.
- 13. “El Canasto de la Memoria” de Javier Ortiz Cassiani, na publicação Sobreviventes Vitoriosos da AZICATCH. Primera edición: agosto de 2017.